domingo, 11 de agosto de 2019

Resposta ao artigo de Osmar Terra na Folha de São Paulo em 10 de agosto de 2019



Comentário ao artigo “Não à farsa da maconha medicinal” , de Osmar Terra, médico, mestre em neurociências e ministro da cidadania.
Artigo publicado na Folha de São Paulo em 10/8/2019

São necessários esclarecimentos em relação ao referido artigo, uma vez que o uso medicinal da cannabis, tanto do canabidiol (CBD) quanto do THC, fazem parte de vasta literatura médica no Brasil e no mundo. 
As publicações no Brasil se iniciaram em 1973, com os farmacologistas Isac G. kaniol e Elisaldo L. de Araújo Carlini, seguidos dos estudos clínicos com Antônio Waldo Zuardi e outros autores, que indicaram  eficácia terapêutica e segurança no seu uso tanto em estudos experimentais quanto clínicos.

A despeito da discussão sobre a liberação da cannabis para fins recreativos (ou uso adulto como preferem alguns), que deveria passar ao largo desta discussão, a vasta e crescente literatura científica vem demonstrando os efeitos positivos da cannabis medicinal  numa enorme variedade de doenças graves e muitas vezes sem tratamento disponível ou refratários aos tratamentos convencionais, tais como doenças oncológicas, neurodegenerativas e neuropsiquiátricas. Por esse motivo, tem angariado cada vez mais apoio da comunidade médica internacional.  Inclusive a OMS, em março de 2019, retirou a cannabis da lista de narcóticos e sugeriu que o cânhamo (toda cannabis que tenha no máximo 0,2% de THC) não tivesse nenhum tipo de regulação ou controle internacional por não oferecer dano à saúde.    

Uma descoberta relativamente recente na história da Ciência, por isso ainda pouco difundida entre médicos e estudantes, oferece a principal razão para a eficácia da cannabis no tratamento desta grande variedade de doenças: a existência do sistema endocanabinoide, um mecanismo de regulação homeostático, que auxilia na manutenção do equilíbrio fisiológico .  O sistema endocanabinoide regula todos os outros sistemas: hormonal, imunológico, sistemas de neurotransmissores, entre outros.   
O sistema endocanabinoide vem sendo desvendado desde a década de 1960, desde as descobertas iniciais de Mechoulan em Israel e com a colaboraçao de Carlini no Brasil e   já começa a  ser estudado nas faculdades de medicina da mesma forma que outros sistemas corporais e fisiológicos. 

A cannabis tem centenas de compostos terapêuticos, entre canabinoides, terpenos e flavonoides. O único composto da cannabis que, em pessoas geneticamente predispostas ou em cérebros em desenvolvimento, tem risco de causar prejuízo,   é o THC. Mesmo assim, se dado em conjunto com o CBD (canabidiol), seus efeitos deletérios são minimizados. O THC não causa retardo mental. Talvez o ministro tivesse em mente a síndrome amotivacional, causada  pelo abuso de cannabis na adolescência em uma parcela de predispostos geneticamente. 

Em relação a causar  esquizofrenia, o uso de cannabis com altas concentrações de THC sem CBD (que funciona como protetor) pode desencadear surtos psicóticos , inclusive esquizofrenia em predispostos geneticamente. Entretanto, a relação causal entre abuso de cannabis e esquizofrenia não é totalmente linear e tem sido discutida há anos na literatura médica. A esquizofrenia é uma doença do neurodesenvolvimento e seu modelo causal é complexo, incluindo fatores genéticos e ambientais, tais como infecções, desnutrição e estressores psicológicos, complicações obstétricas,  vulnerabilidade social (estresse psicológico relacionado à exclusão e discriminação social), além do abuso de cannabis na adolescência. 

Ao contrário do que comumente pensam os leigos, que imaginam que o THC tem somente efeitos prejudiciais,  existem atualmente milhares de pessoas no mundo sendo tratadas com produtos contendo THC com melhora de quadros tais como doença de Huntington,paralisia supranuclear progressiva, doença de Alzheimer, demência Fronto-Temporal, esclerose lateral amiotrófica, esclerose múltipla, epilepsia, síndrome de Tourette, autismo,  depressão e doença de Parkinson refratários , cânceres variados,  dores crônicas, doenças autoimunes, entre outras doenças crônicas e intratáveis.   
Embora o CBD seja o canabinoide mais estudado dentre os mais de 140 já identificados, há alguns com efeito terapêutico já identificado: THCA, CBDA, CBDV e CBG, por exemplo. Ao contrário da opinião de Osmar Terra, o THC tem efeitos terapêuticos muito claros. Afirmar que somente um dos canabinoides tem efeito benéfico é uma opinião enviesada e desatualizada de quem é a favor apenas do canabidiol sintético, este sim parte da milionária indústria farmacêutica que se beneficia e beneficia lobistas que padronizam as medicações a serem adquiridas pelo SUS. Apesar da opinião do colega ministro, os extratos de cannabis medicinal produzidos no Brasil são 10 vezes mais baratos e muito  eficazes, pois são extratos puros da planta com todo o espectro de canabinoides e terpenos presentes agindo em sintonia para uma melhor função, o chamado efeito comitiva.
A maioria dos médicos que prescrevem produtos derivados de cannabis no mundo não defende o uso fumado, e sim oral, sublingual ou até vaporizado. Países avançados como Israel, cuja tecnologia é frequentemente elogiada pela atual administração,  possuem vaporizadores de cannabis nos hospitais para seus pacientes. Existe a possibilidade de ministrá-la também na forma de supositórios, cremes, pomadas e na mesma  Israel, até cookies são usados para ministrar a medicação em crianças com maior dificuldade de aceitação por outras vias.  
O canabidiol e o THC são eficazes em muitas doenças, tanto raras como não raras. Tem eficácia  inclusive no tratamento de dependências químicas, por exemplo, dependência da própria cannabis, de opioides, crack e cocaína, dentro de um sistema de redução de danos, ao qual, por sinal, este governo também é contrário. 
Finalmente, para dar o benefício da dúvida em relação à motivação do posicionamento do ministro, esclarecemos que o uso médico da cannabis é muito diferente da maconha traficada. A segunda é geneticamente selecionada para ter alta concentração de THC, praticamente sem  CBD, provém do tráfico e, portanto, desconhecemos  sua origem, plantio e condições de comercialização, se  orgânica ou  mesclada a outras substâncias, lícitas ou não. Qualquer médico que defenda esse uso não estará respeitando o juramento que fez a Hipócrates. Já a cannabis preparada com fins terapêuticos, cultivada sem agrotóxicos, preparada com rigor e controle de qualidade, com conhecimento de seus compostos para que possam ser prescritos de acordo com a patologia a ser tratada, após avaliação médica responsável, é de grande utilidade  para diversas famílias que convivem com o sofrimento de entes queridos vítimas de doenças graves, incapacitantes, muitas vezes lentamente letais.
Esperamos que a sociedade médica e os governantes tenham parcimônia ao emitir informações enviesadas, e que dialoguem com médicos e cientistas que atuam na área, escutem os pacientes e seus familiares  sobre os benefícios que obtiveram com a cannabis e, principalmente, que distingam o uso médico do uso recreativo, pois envolvem  situações diferentes e uso de produtos diferentes. 
Não é justo penalizar os que precisam do uso terapêutico pelo medo de que isso signifique um aumento no uso recreativo. E é uma ofensa aos profissionais de saúde sérios que trabalham em prol dos pacientes e estão muito distantes e são frequentemente contrários ao uso recreativo.

Last, but not least, o Brasil não deveria andar na contramão do resto do mundo. Estamos perdendo a chance de ajudar, de forma muito eficaz, uma parcela carente da população, que não tem acesso aos produtos importados . Além disso, nesta longa crise econômica que o país enfrenta, estaremos perdendo a oportunidade de mais uma frente para geração de empregos e mobilização da economia.    

Ana G Hounie, psiquiatra, Doutora e Pós-doutora pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, prescritora de cannabis com fins medicinais há 3 anos.
Milena Pereira Pondé, Psiquiatra, Professora Adjunta de psicofarmacologia da Escola BAHIANA de Medicina. Doutora em Saúde Coletiva pela UFBA. Pós-doutorado na área de autismo na Divisão Psicossocial da McGill University.


O ARTIGO DO MINISTRO