Comentário
ao artigo “Não à farsa da maconha medicinal” , de Osmar Terra, médico, mestre
em neurociências e ministro da cidadania.
Artigo
publicado na Folha de São Paulo em 10/8/2019
São necessários esclarecimentos em relação ao referido
artigo, uma vez que o uso medicinal da cannabis, tanto do canabidiol (CBD)
quanto do THC, fazem parte de vasta literatura médica no Brasil e no mundo.
As
publicações no Brasil se iniciaram em 1973, com os farmacologistas Isac G. kaniol
e Elisaldo L. de Araújo Carlini, seguidos dos estudos clínicos com Antônio Waldo Zuardi e outros autores, que indicaram eficácia terapêutica e segurança no seu uso tanto em estudos experimentais quanto clínicos.
A despeito da discussão sobre a liberação da cannabis para
fins recreativos (ou uso adulto como preferem alguns), que deveria passar ao
largo desta discussão, a vasta e crescente literatura científica vem demonstrando
os efeitos positivos da cannabis medicinal numa enorme variedade de doenças graves e muitas vezes sem
tratamento disponível ou refratários aos tratamentos convencionais, tais como
doenças oncológicas, neurodegenerativas e neuropsiquiátricas. Por esse motivo, tem angariado
cada vez mais apoio da comunidade médica internacional. Inclusive a OMS,
em março de 2019, retirou a cannabis da lista de narcóticos e sugeriu que o
cânhamo (toda cannabis que tenha no máximo 0,2% de THC) não tivesse nenhum tipo
de regulação ou controle internacional por não oferecer dano à saúde.
Uma descoberta relativamente recente na história da Ciência, por isso ainda pouco difundida entre médicos e estudantes, oferece a principal razão para a eficácia da cannabis no tratamento desta grande variedade de doenças: a existência do sistema endocanabinoide, um mecanismo de regulação
homeostático, que auxilia na manutenção do equilíbrio fisiológico . O sistema endocanabinoide regula todos os outros sistemas: hormonal, imunológico, sistemas de neurotransmissores, entre outros.
O
sistema endocanabinoide vem sendo desvendado desde a década de 1960, desde as descobertas iniciais de Mechoulan em Israel e com a colaboraçao de Carlini no Brasil e já
começa a ser estudado nas faculdades de medicina da mesma forma que
outros sistemas corporais e fisiológicos.
A
cannabis tem centenas de compostos terapêuticos, entre canabinoides, terpenos e
flavonoides. O único composto da cannabis que, em pessoas geneticamente
predispostas ou em cérebros em desenvolvimento, tem risco de causar prejuízo, é
o THC. Mesmo assim, se dado em conjunto com o CBD (canabidiol), seus efeitos
deletérios são minimizados. O THC não causa retardo mental. Talvez o ministro
tivesse em mente a síndrome amotivacional, causada pelo abuso de
cannabis na adolescência em uma parcela de predispostos geneticamente.
Em
relação a causar esquizofrenia, o uso de cannabis com altas
concentrações de THC sem CBD (que funciona como protetor) pode desencadear surtos psicóticos , inclusive
esquizofrenia em predispostos geneticamente. Entretanto, a relação causal entre
abuso de cannabis e esquizofrenia não é totalmente linear e tem sido discutida
há anos na literatura médica. A esquizofrenia é uma doença do
neurodesenvolvimento e seu modelo causal é complexo, incluindo fatores
genéticos e ambientais, tais como infecções, desnutrição e estressores
psicológicos, complicações obstétricas, vulnerabilidade social (estresse
psicológico relacionado à exclusão e discriminação social), além do abuso de
cannabis na adolescência.
Ao contrário do que comumente pensam os leigos, que imaginam que o THC tem somente efeitos prejudiciais, existem atualmente milhares de pessoas no mundo sendo
tratadas com produtos contendo THC com melhora de quadros tais como doença de Huntington,paralisia
supranuclear progressiva, doença de Alzheimer, demência Fronto-Temporal,
esclerose lateral amiotrófica, esclerose múltipla, epilepsia, síndrome de
Tourette, autismo, depressão e doença de Parkinson
refratários , cânceres variados, dores crônicas, doenças
autoimunes, entre outras doenças crônicas e intratáveis.
Embora
o CBD seja o canabinoide mais estudado dentre os mais de 140 já identificados,
há alguns com efeito terapêutico já identificado: THCA, CBDA, CBDV e CBG, por
exemplo. Ao contrário da opinião de Osmar Terra, o THC tem efeitos terapêuticos
muito claros. Afirmar que somente um dos canabinoides tem efeito benéfico é uma
opinião enviesada e desatualizada de quem é a favor apenas do canabidiol
sintético, este sim parte da milionária indústria farmacêutica que se beneficia
e beneficia lobistas que padronizam as medicações a serem adquiridas pelo SUS.
Apesar da opinião do colega ministro, os extratos de cannabis medicinal
produzidos no Brasil são 10 vezes mais baratos e muito eficazes, pois são
extratos puros da planta com todo o espectro de canabinoides e terpenos
presentes agindo em sintonia para uma melhor função, o chamado efeito comitiva.
A
maioria dos médicos que prescrevem produtos derivados de cannabis no mundo não
defende o uso fumado, e sim oral, sublingual ou até vaporizado. Países
avançados como Israel, cuja tecnologia é frequentemente elogiada pela atual administração, possuem vaporizadores de cannabis nos hospitais para seus
pacientes. Existe a possibilidade de ministrá-la também na forma de supositórios, cremes, pomadas e na mesma Israel, até cookies são usados para ministrar a medicação em crianças com
maior dificuldade de aceitação por outras vias.
O
canabidiol e o THC são eficazes em muitas doenças, tanto raras como não raras. Tem eficácia inclusive no tratamento de dependências químicas, por exemplo,
dependência da própria cannabis, de opioides, crack e cocaína, dentro de um
sistema de redução de danos, ao qual, por sinal, este governo também é contrário.
Finalmente,
para dar o benefício da dúvida em relação à motivação do posicionamento do
ministro, esclarecemos que o uso médico da cannabis é muito diferente da
maconha traficada. A segunda é geneticamente selecionada para ter alta
concentração de THC, praticamente sem CBD, provém do tráfico e, portanto, desconhecemos sua origem, plantio e condições de comercialização, se orgânica ou mesclada a outras substâncias, lícitas ou não. Qualquer
médico que defenda esse uso não estará respeitando o juramento que fez a
Hipócrates. Já a cannabis preparada com fins terapêuticos, cultivada sem
agrotóxicos, preparada com rigor e controle de qualidade, com conhecimento de
seus compostos para que possam ser prescritos de acordo com a patologia a ser
tratada, após avaliação médica responsável, é de grande utilidade para
diversas famílias que convivem com o sofrimento de entes queridos vítimas de
doenças graves, incapacitantes, muitas vezes lentamente letais.
Esperamos
que a sociedade médica e os governantes tenham parcimônia ao emitir informações
enviesadas, e que dialoguem com médicos e cientistas que atuam na área, escutem
os pacientes e seus familiares sobre os benefícios que obtiveram com a cannabis e,
principalmente, que distingam o uso médico do uso recreativo, pois envolvem situações diferentes e uso de produtos diferentes.
Não é justo penalizar os que
precisam do uso terapêutico pelo medo de que isso signifique um aumento no uso
recreativo. E é uma ofensa aos profissionais de saúde sérios que trabalham em
prol dos pacientes e estão muito distantes e são frequentemente contrários ao uso recreativo.
Last, but not least, o Brasil não deveria andar na
contramão do resto do mundo. Estamos perdendo a chance de ajudar, de forma muito eficaz, uma parcela carente da população, que não tem acesso aos produtos
importados . Além disso, nesta longa crise econômica que o país enfrenta, estaremos perdendo a oportunidade de mais uma frente para geração de empregos e mobilização da economia.
Ana
G Hounie, psiquiatra, Doutora e Pós-doutora pela Faculdade de
Medicina da Universidade de São Paulo, prescritora de cannabis com fins
medicinais há 3 anos.
Milena
Pereira Pondé, Psiquiatra, Professora Adjunta de psicofarmacologia
da Escola BAHIANA de Medicina. Doutora em Saúde Coletiva pela UFBA.
Pós-doutorado na área de autismo na Divisão Psicossocial da McGill University.
O ARTIGO DO MINISTRO